ou caso eu já tenha feito comida pra você um dia, acho que existe uma meia dúzia de coisas que você deveria saber.
quando eu comecei a escrever, ainda adolescente e morando na casa dos meus pais, eu me definia como a inimiga do fogão. não dava pra entender como alguém jogava meia dúzia de coisas numa panela em cima do fogo – porra, fogo não, galera – e saía algo incrível e com cheiro bom e que me faria ter experiências e lembranças boas. mas ao mesmo tempo eu era a escudeira da mamãe.
mamãe é muito conhecida entre os amigos dela, os meus amigos, os amigos do meu pai, nossos parentes, nossos vizinhos, os amigos dos amigos de todo mundo, os amigos dos vizinhos e todo mundo que já colocou alguma coisa que ela fez num prato como uma pessoa que apenas: detona. e ela odeia mais que qualquer coisa na vida ter gente palpitando no que ela está fazendo. porque ela não repete a receita, porque toda vez alguma coisa muda, porque ela teve uma ideia nova e não quer em hipótese alguma ser questionada sobre se vai dar certo ou não. porque ela sabe que vai dar certo, mesmo quando diz que não.
nesse cenário eu era a assistente perfeita. eu não sabia porra nenhuma e, consciente disso, não tinha que opinar. era pra cortar a cebola, corta a cebola aí. era pra descascar a batata, descasca a batata aí. era pra lavar o arroz, lava o arroz aí. era pra fritar o macarrão do yakisoba, frita o macarrão aí. era pra mexer o risoto, mexe o risoto aí. e foram anos e anos.
então eu me mudei pra são paulo e bom, ninguém mais ia cozinhar pra mim. se eu descascasse a batata ela ia ficar lá, descascada, me olhando. se eu lavasse o arroz ele ia ficar lá também, molhadinho, cru e me olhando. comer fora todo dia é uma opção, mas cansa, engorda a pessoa e emagrece a conta corrente.
de repente me vi de frente pra um fogão pensando em como eu podia ser aceita por ele, porque eu aceitava tudo que viesse dele de boinha. era tanto medo de fracassar, era tanto medo de não conseguir, era tanto medo de estragar tudo – reflexo de uma vida com medo de estragar tudo, mas outra história. começamos a nos entender quando eu descobri que tudo que eu tinha visto minha mãe fazer aos meus 5, aos meus 8, aos meus 12, aos meus 15, aos meus 18, aos meus 24 fazia parte de alguma área do meu cérebro. eu só precisava, a princípio, repetir.
e foi o que eu fiz durante muito tempo, pra mim. e só pra mim. então eu percebi que poderia fazer isso pra outras pessoas. gente que não manja nada, gente que tem preguiça, gente que quer comer algo que eu sei fazer e que ela não sabe, gente que eu quero por perto e posso e vou e ok estarei cozinhando pelo simples fato de ter uma desculpa pra ter por perto.
mas nem de longe isso foi fácil no início ou é fácil agora. além de achar tudo que eu faço uma merda, eu vou receber feedback e vou ter que lidar com ele. e vou ter que me virar pra fazer aquela coisa qualquer ser melhor da próxima vez. e eu sei que ficou sem sal, cara, porque eu prefiro que você coloque sal do que não tenha opção de tirar. é assim que eu rolo. desde a hora que eu fui comprar as coisas, eu tive medo de esquecer algo, eu tive medo de esquecer de perguntar e acabar comprando algo que você não gostasse de comer, eu tive medo de queimar tudo, de não cozinhar direito, de deixar tudo com gosto de corrimão de estação do metrô.
então se eu cozinhei pra você (ou disse que vou fazer um dia), saiba que: foi difícil. eu me questionei o tempo todo, quase chorei de alegria quando você comeu duas vezes, só respirei com calma quando você colocou o prato na pia e falou que tava fera. e se você disse que não tava fera, eu cheguei em casa e sentei na frente do armário e pensei no que eu teria feito melhor e como eu teria feito melhor. porque além de deixar meus medos de lado por você, sua opinião me importa pra caralho.
obrigada por comer o que quer que tenha sido. sem sal, sem gosto, mal-cozido ou a melhor qualquer coisa que eu já fiz.
a felicidade foi toda minha.