televisionado? não, delivery.

ontem foi meu aniversário. eu tinha vários planos, marquei coisas, convidei pessoas, fiz reserva de mesa em restaurante. mas ao contrário de todos esses planos, uma galera resolveu, pela quarta vez, reclamar na rua por coisas com as quais discordava. nas outras oportunidades eu não estive nem perto, pois estava trabalhando, estudando ou, simplesmente, trancafiada num ônibus cheio de gente em alguma grande avenida congestionada. apesar de toda a celeuma do trânsito, joguei candy crush e esperei pacientemente. há males que vem pra alguma coisa, vamos aguardar que seja para o bem.

foi então que me dei conta que tive a brilhante ideia de morar no meio, exatamente no meio, do raio de ação de qualquer coisa que aconteça nessa cidade. no centro, na consolação ou na paulista, eventualmente alguma coisa vai parar aqui. e se meus planos consistiam em ir para uma lanchonete a duas quadras de casa ou para casa apenas, eu ia ter que passar pelo que tivesse acontecendo, querendo ou não.  tudo que eu sabia é que o que quer que estivesse rolando estava, sim, perto da minha casa, e que uma pessoa relativamente próxima tinha sido detida no centro.

peguei o trem calculando um tempo de aproximadamente 40 minutos pra chegar em casa. errei por uns cinco.

logo na estação paulista, as pessoas que estavam a vários metros abaixo da rua não pareciam confortáveis. todos subiam às pressas enquanto as escadas rolantes pareciam cada vez mais lentas. no fim das escadas, três policiais encurralavam dois meninos que tinham, se muito, doze anos. não sei se era um prenúncio, um prefácio ou uma resenha safada do que eu ia ver.

na porta da estação, que vai direto pra rua da consolação, várias pessoas cheirando a vinagre e sujas entravam enquanto desavisados e desorientados chegando do trabalho se amontoavam atrás dos guardas do metrô, que sabe deus porquescaraio tapavam a saída e olhavam com cara de reprovação para os que saiam. eu fui uma dessas pessoas.

as duas faixas da consolação logo ali na frente estavam fechadas, o que permitiu uma pequena festinha de skatistas. carros da polícia subiam, pessoas subiam e desciam a rua correndo, o que não fazia absolutamente nenhum sentido pra mim naquele momento. na primeira esquina, com a antônio carlos, vi do meu lado esquerdo, carros de policia fechando as faixas de carro que subiam. do lado direito, uma massa absurda de pessoas vinha em minha direção. como eu não sabia se era bom ou ruim, desci mais um quarteirão pela consolação.

na esquina seguinte, na matias aires, todas as lojas fechando, as pessoas dentro dos sujinhos dos dois lados trancadas por portas de vidro, todas as mesas tinham sido recolhidas. olhei para a direita novamente pra tentar alcançar a bela cintra, uma multidão corria enquanto duas bombas estouravam.

me mantive na consolação por mais um quarteirão. uma quantidade absurda de pessoas subia por todos os lados. cheguei à fernando de albuquerque e olhei mais uma vez se era possível entrar. era. nos 100m seguintes, umas três pessoas me perguntaram se existia polícia por aquele lado. aparentemente o medo não era só meu. na esquina das primas, enquanto muita gente tentava se esconder no posto, virei à esquerda em direção a minha casa, que nunca pareceu tão longe. atrás de mim, pessoas andando estavam sendo, naquele momento, atingidas por balas de borracha e mais bombas. eu não sabia se devia olhar pra trás.

mas o legal mesmo estava na minha frente: uma cavalaria inteira bloqueava a rua na altura do exquisito. eu não sei como dizer isso sem parecer que entrei num túnel que me levou de volta pra idade media, mas os caras estavam com… espadas??? queria muito ser uma dessas pessoas que estavam na rua com iphones pra registrar as coisas, mas meu telefone estava no meu bolso e minhas mãos não conseguiram chegar até lá.

olhei pro chão e apertei o passo. passei pela cavalaria como se eu fosse cega e andei os outros 90m pra chegar ate em casa. e isso foi só o primeiro ato.

em casa acompanhei provavelmente a cobertura mais absurda da história da tv brasileira. o show de asneiras parecia infinito. pouco tempo depois vi, da janela do meu quarto, um grupo de manifestantes entrando pela pedro taques e descendo a rua. até aí tudo calmo e tranquilo.

ruídos de bombas, tiros, sirenes e helicoptero complementavam as incríveis bobagens ditas na globo news.

eis que, do nada, dezenas de pessoas passam correndo e gritando em frente ao meu prédio. logo atrás, três ou quatro carros de polícia correm também, perseguindo esses indivíduos. param todos exatamente na frente da minha varanda, onde eu e o diego podíamos ver com clareza cada movimento de cada policial. delicias de se morar no segundo andar. ao mesmo tempo em que eu queria filmar, fotografar, tacar ovo podre, me deu um pouco de pavor de pensar que eles poderiam simplesmente atirar na gente e dizer que foi uma fatalidade. algumas pessoas pararam como se fossem se render, mas foram orientadas pelos policiais a continuar. no momento em que voltaram a correr, os maravilhosos oficiais do estado de sp começaram a atirar balas de borracha novamente, pelas costas das pessoas que tinham acabado de tentar se render. quando as pessoas ficaram distantes de mais pra levar mais tiros, os policiais voltaram aos carros e continuaram na direção dos manifestantes.

nesse momento, enquanto a tv falava em dispersão, eu tinha acabado de assistir uma belíssima – pra não dizer escrotíssima – cena de caçada.

isso não passou na tv, isso não foi gravado por um cinegrafista amador, não tinha um helicoptero sobrevoando a rua.

isso foi entregue aqui, delivery, na porta da minha casa.

e estou escrevendo pra ter certeza de que eu nunca mais vou esquecer.

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4 Responses to televisionado? não, delivery.

  1. Anna Paula says:

    puta merda! e não sei me expressar. não ensinaram palavras que me façam expressar o que sinto com isso tudo. \=

  2. Pingback: Por que eu chorei tanto essa semana? | Casa da Gabi

  3. Pingback: Coisas boas da semana | Memórias da Pedra do Sapato

  4. Luana says:

    O seu relato é um dos melhores que li até agora, ele foi um dos responsáveis por me fazer ir as ruas de Brasília para protestar. 🙂

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